Morre o Último Herói do Levante do Gueto de Varsóvia

Hoje, sinto que precisamos fazer uma pausa na correria do dia a dia da Guerra de Gaza para refletir sobre algo que vai muito além do nosso habitual. Recebemos uma notícia que, embora triste, traz consigo uma força e uma luz incríveis: Michael Smuss, o último combatente sobrevivente da Revolta do Gueto de Varsóvia, nos deixou aos 99 anos. Eu o conheci em 2008 durante meu curso no Yad Vashem.

Noventa e nove anos de uma vida que testemunhou o impensável e que lutou pelo impossível. Smuss não era apenas um homem; ele era um elo vivo com um dos capítulos mais sombrios e, paradoxalmente, mais inspiradores da história humana.

Michael Smuss, um corajoso combatente do Levante do Gueto de Varsóvia durante a Segunda Guerra Mundial, faleceu em 21 de outubro de 2025. Sua morte marca o fim de uma era, pois ele foi o último sobrevivente conhecido da resistência judaica que desafiou bravamente a opressão nazista em 1943. A vida notável de Smuss, repleta de coragem, resiliência e um compromisso em compartilhar sua história, deixa um legado indelével.

Na foto, Michel vai assinar, em 2006, aos 80 anos de idade, um cartaz sobre um Memorial do Levante do Gueto, que apresentou em Israel em 1993.

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O procedimento normal dos soldados alemães era usar lança-chamas contra prédios do gueto com os judeus dentro. Foto do álbum do comandante alemão do massacre.

Jovens que determinaram seus destinos

Para quem não está familiarizado, a Revolta do Gueto de Varsóvia, em abril de 1943, foi um ato de desafio puro. Milhares de judeus, confinados em um gueto criado pela Alemanha Nazista que ocupava a Polônia, famintos, doentes e cientes de que seu destino final era o extermínio, decidiram lutar. Não por uma vitória militar – eles sabiam que as chances eram zero – mas pela dignidade. Pelo direito de escolher como iriam enfrentar o fim. Pela honra.

Desde 1939 esta foi a primeira revolta de civis sob ocupação nazista contra o que era o exército mais bem equipado e cruel do mundo. Os jovens judeus, tão novos como com 14 anos de idade, combateram por um mês. Mais tempo que o exército polonês conseguiu combater três anos antes.

Michael Smuss, com apenas 19 anos na época, era um desses jovens. Ele se juntou à Organização de Combate Judaica (ZOB) e, armado com o que podia, enfrentou a máquina nazista. Imaginar a coragem necessária para encarar soldados alemães com coquetéis molotov, para erguer uma bandeira azul e branca de Israel em meio à destruição, é algo que transcende a compreensão comum.

Onde estavam os adultos judeus?

Esta é uma pergunta justa. Naquele momento, a eliminação da população judaica do Gueto de Varsóvia já estava rumando para seu capítulo final. O envio dos judeus para o extermínio em Treblinka tinha se iniciado no verão de 1942. Desde o início do confinamento dos judeus no gueto, os homens fisicamente mais aptos eram retirados diariamente para trabalhos forçados, trabalho escravo, principalmente limpando escombros de Varsóvia, que havia sido bombardeada na invasão alemã, e também na manutenção de estradas e estradas de ferro. Nem todos voltavam a cada dia. O trabalho escravo visava matar os judeus por esgotamento. Os que não conseguiam trabalhar eram executados sumariamente no local onde estavam. Assim, em abril de 1943, a quota de homens entre 20 e 45 anos de idade no gueto estava praticamente esgotada.

Mas a Polônia tinha 3,4 milhões de judeus e os judeus serviam o exército, inclusive como oficiais. Onde eles estavam em 1943? Há duas versões sobre o que aconteceu na invasão alemã. Uma diz que os militares judeus tomaram a frente, sabendo que precisavam impedir a conquista pelos nazistas. Outra, com a qual eu concordo, diz que o comando polonês colocou os militares judeus na primeira linha de defesa. Praticamente todos morreram em combate nos primeiros dias da invasão. Ademais, existia uma ordem expressa e conhecida do Alto Comando Alemão para que todos os militares judeus poloneses que fossem rendidos, fossem executados sumariamente. Apenas os judeus. Apesar de não existir uma só fotografia ou relatório sobre isso, a ordem existe documentada e provavelmente foi cumprida.

Depois da primeira semana, a União Soviética invadiu a Polônia pelo leste. Um grande número de militares que estavam no oeste fugiram para o leste imaginando estarem seguros junto aos soviéticos. Um deles, mas não sabemos se estava em armas ou não, foi Mordechai Anielevicz, soldado. Entre 1940 e setembro de 1941, ele foi várias vezes da zona soviética para a zona alemã e para o Gueto de Varsóvia. Logo no começo, entre 5/mar e 19/mai/1940, os soviéticos executaram 22.000 civis e militares poloneses na floresta de Khatyn, na Bielorússia. Todos os oficiais e sargentos que fugiram dos alemães foram abatidos lá com um tiro na nuca, inclusive todos os judeus. Entre os poloneses da área leste ocupada, foram executados todos os advogados, prefeitos, professores de história e policiais acima da patente de soldado, pois isso era e é o que o marxismo pressupõe.

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Possivelmente a única foto conhecida de Pawel Frenkel, encontrada na Polônia em 2023.

Isto explica por que não havia militares judeus dentro do Gueto de Varsóvia. Sabemos apenas de dois: Mordechai Anielevicz, soldado, e Pawel Frenkel, capitão, tido como o comandante do Betar no gueto. Até o final de 2023 só havia um desenho com a face dele. Mas um historiador polonês encontrou material nos registros militares, em 2023, e encontrou esta foto dele recém-formado (acima), como tenente em 1937 (provavelmente). O historiador encontrou ainda nos registros nome e foto de um irmão mais velho, Yakub (Jacó) Frenkel, também capitão do exército do qual nem se sabia ter existido (abaixo).

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O kibutz Yad Mordechai, pertinho do norte da Faixa de Gaza, homenageia Anielevicz

Uma Vida Forjada no Gueto de Varsóvia

Nascido em 1926 na então Cidade Livre de Danzig (hoje Gdansk, Polônia), Smuss mais tarde se mudou para Lodz e Varsóvia. Em 1940, com apenas 14 anos, ele estava entre os 400.000 judeus confinados à força no Gueto de Varsóvia, uma prisão apertada e brutal onde doenças e fome ceifaram inúmeras vidas. Apesar das condições terríveis, Smuss juntou-se à resistência judaica, liderada por Mordechai Anielewicz, determinado a lutar contra os nazistas.

Mordechai Anielewicz foi um integrante do Betar, que prestou serviço militar no exército polonês e depois foi enviado ao Shomer Hatzair com a missão de passar os conhecimentos básicos possíveis de manuseio de armas e táticas. O número de jovens da esquerda judaica no Gueto de Varsóvia era muito grande e do Betar era pequeno. Mas o túnel utilizado para entrar e sair do gueto sem os alemães perceberem se localizava no porão da casa que era o centro de comando do Betar. Foi rapidamente construído antes mesmo do gueto ter sido murado. Portanto, apesar da narrativa que retira o Betar da história, os grupos eram aliados e trabalhavam juntos. Por ter mais membros, houve mais sobreviventes da esquerda judaica que da direita judaica. A esquerda judaica formou o ZOB com Shomer e Dror e o Betar formou o ZZW. Jovens do Bnei Akiva também participaram, mas seu número era bem pequeno.

No início do levante do gueto, a missão do Betar era remover pelo túnel o maior número possível de civis não combatentes. Isso funcionou por duas noites. Na terceira, houve uma emboscada por uma patrulha alemã e todos os membros do Betar, menos um, e todos os civis foram mortos nela. Um dos principais comandantes do Betar tombou naquele combate. Depois, não houve mais como implementar a missão.

Enquanto trabalhava na reparação de capacetes de soldados nazistas, Smuss secretamente desviava um diluente de tinta essencial para a fabricação de coquetéis Molotov. Ele contrabandeava esse material para a resistência, que armazenava as armas caseiras nos telhados do gueto. Em 19 de abril de 1943, quando as forças nazistas entraram para destruir o gueto, Smuss e outros combatentes lançaram esses coquetéis Molotov contra o inimigo, um ato desesperado de desafio que se tornou um símbolo da resistência judaica.

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Esta foto do Gueto de Varsóvia é do outono de 1941, praça Muranowski. O prédio mais alto ao fundo era onde se localizava o comando, o arsenal e o túnel do Betar. Foi naquele telhado, que durante quase um mês tremulou a bandeira sionista (atual bandeira de Israel), desafiando as tropas nazistas.

Sobrevivendo ao inimaginável

A coragem de Smuss teve um alto custo. Ele foi um dos poucos combatentes da resistência a sobreviver ao levante que durou um mês. Capturado pelas tropas nazistas, ele escapou por pouco da deportação para o campo de extermínio de Treblinka, quando os nazistas o redirecionaram para trabalhar em outros campos devido à escassez de mão de obra. Smuss enfrentou dificuldades inimagináveis, incluindo uma marcha da morte em 1945, antes que o fim da guerra trouxesse sua libertação. A história dele, de ter combatido, sido capturado e não executado, é única. Os outros sobreviventes conseguiram sair do gueto e se esconder na cidade de Varsóvia, participando depois, do Levante da Cidade de Varsóvia, já como combatentes urbanos experientes, e nenhum foi morto nesta segunda batalha desesperada e fadada ao fracasso.

Após a guerra, Smuss imigrou para os Estados Unidos, onde construiu uma família. Mais tarde, estabeleceu-se em Israel, onde começou a processar seu trauma por meio da arte. A pintura tornou-se sua válvula de escape, uma forma de confrontar os horrores que testemunhou. Ele também se dedicou à educação, visitando escolas alemãs para compartilhar sua história com os descendentes daqueles que o perseguiram, promovendo entendimento e memória.

Um Legado de Resiliência e Humor

Apesar do peso de suas experiências, Smuss era conhecido por seu notável senso de humor. Mesmo aos 99 anos, ele ainda conseguia compartilhar uma risada, como lembrou o familiar Paul Diedrich, que passou um tempo com ele em Israel no início deste ano. A capacidade de Smuss de encontrar luz em meio à escuridão foi um testemunho de sua força e humanidade.

Seu falecimento, confirmado por sua esposa em Israel, foi marcado pelo Yad Vashem, o Centro de Memória do Holocausto de Israel, que informou que seu funeral ocorreu em 24 de outubro de 2025. A história de Smuss, no entanto, continua viva por meio de sua arte, seu testemunho e da coragem que demonstrou diante de adversidades inimagináveis.

Homenageando um Herói

A vida de Michael Smuss nos lembra do poder da resistência, da importância da memória e da resiliência do espírito humano. Suas contribuições para o Levante do Gueto de Varsóvia e seus esforços para educar as gerações futuras garantem que as atrocidades do Holocausto — e a bravura daqueles que lutaram contra elas — nunca sejam esquecidas. Descanse em paz.

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No mês passado, em setembro 2025, o embaixador da Alemanha em Israel concedeu a Smuss a Cruz Federal Alemã de Mérito, em reconhecimento à sua contribuição à educação sobre o Holocausto e à promoção do diálogo entre os dois países, informou a embaixada. (foto oficial da embaixada da Alemanha em Israel.

Por José Roitberg – jornalista e pesquisador

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